segunda-feira, 11 de maio de 2020

O Brasil da pátria amada esqueceu que era para ser um país de todos.

Hoje começaram as inscrições para o Enem, e como todos aqui devem saber, tudo o que tem se falado sobre a prova tem ganhado uma grande repercussão. Então decidi escrever o meu ponto de vista sobre a campanha realizada pelo ministério da Educação para a promoção Enem. Na primeira tomada vemos um estudante com dois celulares, dentre eles um IPhone e aparentemente um Galaxy S10, apoiados num tripé que eu nunca vi à venda por um preço acessível.


Na segunda tomada, uma estudante ao lado de seu MacBook começa a falar para você ESTUDAR de qualquer lugar, de diferentes formas, pela Internet, enfim... falou praticamente para que os estudantes "se virem". Mais ao final, uma outra estudante grava outra cena e ao pausar ela somos surpreendidos com o fato dela também possuir um Iphone, que está equipado com um microfone da Rode e mais um outro super tripé. Todos os takes com prateleiras de livros lindas, livros num estado tão "novo" que nem parecem terem sido emprestadas de alguma biblioteca pública, que é para muitos a única forma de ter um livro em suas mãos.



Este é o Brasil da "pátria amada", a representação do estudante ali colocada é a do estudante de classe A e B. A representação daqueles alunos que passaram pelo ensino fundamental e médio nas melhores escolas de sua cidade, onde as mensalidades custam mais que um salário mínimo. Este estudante médio, que o ministério da educação quis retratar, despertou a curiosidade para saber quantos % dos estudantes brasileiros eles conseguiram de fato representar.


Se bem me lembro, outro dia li uma reportagem falando que mais de 30% dos estudantes brasileiros não possuem acesso a Internet. Será mesmo que, como eu vejo muito aqui no LinkedIn, é apenas a pessoa ter vontade, empreender e conseguir seu acesso a Internet? Ou será que o governo deveria pensar o por que que estes 30% não possuem acesso? E quem garante que dentro dos outros 70% todos possuem uma internet boa o suficiente para acompanhar suas vídeo-aulas em boa qualidade? Será mesmo que todos os alunos dentro do Brasil possuem um super smartphone, um notebook ou até mesmo um "pc" para conseguir acompanhar vídeo-aulas? Faz algum tempo que eu saí do ensino médio, mas lá no começo da década eu estudava de manhã e trabalhava a tarde para conseguir comprar as coisas que eu precisava, como o uniforme escolar, os materiais e mais tarde depois de juntar dinheiro por muito tempo, um computador. Lembro que muita gente dependia do colégio para fazer suas inscrições para as provas, sejam o PSS, o vestibular, Enem e até mesmo as OBMEP. Talvez as coisas tenham mudado de lá pra cá, mas pensar nisso é querer entrar numa bolha que não faço parte.
Querer que o Brasil seja representado desta forma é curioso, alguns dados recentes do índice de Gini (que para quem não sabe é um índice que tenta mensurar a desigualdade social dentro dos países) mostra que somos o sétimo país da lista. O sétimo país de baixo pra cima, ou seja, o sétimo país mais desigual do mundo. Reportagens mostram que 2,7% das famílias brasileiras concentram 20% de toda a renda brasileira. Estes devem viver numa bolha, e a propaganda do Enem realmente conseguiu representá-los. Mas o mundo fora desta bolha é diferente, se buscarmos alguns dados internos do nosso país, conseguimos claramente entender o porque de tanta desigualdade, o porque de tudo isso acaba justificando. Mas vivemos num governo que o estudo social é visto como algo inútil, desnecessário. E as coisas acabam saindo "do jeito que tá aí".
Apenas para simplificar, alguns dados recentes mostram que mais da metade dos brasileiros recebem menos de um salário mínimo ao mês. 35,7% da população não possui coleta de esgoto em sua residência, somos o 112º país no ranking de saneamento. Dados indicam que a extrema pobreza voltou a ser uma crescente, e nós voltamos a ver reportagens sobre a fome, algo que lembro ser bastante comum quando era criança lá nos anos 90. Estamos próximos ao maior nível de desemprego da nossa história, e conforme entrevista de um secretário do Ministério da Fazenda, a perspectiva do desemprego em meio a pandemia é do número praticamente dobrar. E a incompetência do governo é assumida quando o secretário enuncia que “A gente pega muito dinheiro do povo, mas usa mal”.


O Brasil tinha conseguido mudar sua situação, tivemos grandes evoluções desde a crise de 98 até parte desta década. Se pegarmos um mapa de IDH deste período poderíamos até ficar orgulhosos, pois de fato houve estímulo ao desenvolvimento em grande parte do Brasil. Vivemos o melhor momento da nossa economia, com o menor índice de desemprego da história, com o varejo e o setor de serviços mostrando sua força e assumindo o principal papel na roda da nossa economia. E não era à toa, o governo soube incentivar muito bem para que tudo isso acontecesse, lembram da isenção de IPI? Mas de determinado momento pra cá, a continuidade foi perdida. E a promessa de uma retomada e até de uma renovação, de reformas... de fazer o que deveria ser feito, foi uma promessa enganosa.
Depois de toda esta abertura para falar sobre a situação sócio-econômica do Brasil, quero voltar a falar do Enem. Não sou o único a pensar que a Educação é a principal ferramenta para o desenvolvimento de um país. Nas salas de aula cresci com professores contando que o Japão conseguiu se recuperar de duas bombas atômicas e virar uma super potência tecnológica graças ao investimento na educação. Por que deveria pensar diferente?


Quando assisti a propaganda me questionei porque eles quiseram representar aquilo que não reflete a maioria dos brasileiros. Por que fazer uma propaganda focada claramente naqueles que se não conseguirem uma vaga em alguma universidade pública com toda certeza conseguirão ainda pagar por uma graduação? O foco do governo está correto? A educação se mostra como uma grande variável para o aumento da renda de uma família. E sim, deve ser uma preocupação do governo em querer que isso seja cada vez mais acessível. A conta é simples: famílias com maior renda possuem maior poder de compra, e assim toda a roda da economia pode girar mais rápido. O governo em todos os níveis, ao promover uma prova tão abrangente quanto esta, deve estar lá para fazer isso acontecer. Caso contrário este exame perde totalmente o sentido. Então não é difícil concluir que a propaganda do Enem destinou-se a alguma base eleitoral que praticamente não inclui os brasileiros, até pelo contrário, exclui. É triste, mas a exclusão está muito presente dentro do nosso dia-a-dia. Muitos, por exemplo, lembram dos menos favorecidos apenas na hora de bater a foto de sua "caridade" no Natal.
Não foram poucas as manifestações nos últimos anos pedindo por maior responsabilidade dos gastos públicos. E dinheiro nós sabemos que o país tem, se você duvida por favor pesquise por impostômetro. O que falta é querer gastar da forma correta. Afinal de contas, quem é que precisa de auxílio terno? Ou de auxílio moradia? Porque eles tem vale refeição? Ainda mais quando se tem um salário astronômico para o padrão da nossa sociedade. Como pode isso não ser incomodo pra ninguém, mas aqueles 80 reais do Bolsa Família que ajuda muitas famílias a simplesmente "comprar alimentos" consegue revoltar tanta gente?

Claro que daqui a quatro ou cinco anos surgirão novos mártires, novos heróis nacionais que conseguiram sair da extrema pobreza para conseguir um diploma que vai lhe colocar na mesma c ondição daquele cara que estudou a vida inteira na escola particular e fez uma universidade pública quando for procurar um emprego. E talvez este novo mártir consiga o emprego enquanto o outro irá achar injusto, pois pensa ser melhor do que um "ex-favelado", ou um "ex-caipira". Mas sabemos que é muito pelo contrário, quem vem dos meios mais carentes tende a se comprometer muito mais do que os outros. Toda esta grande propaganda por trás destes sofridos heróis é idolatrada por muitos, sem falar daqueles que disparam para todos os outros que "quem quer consegue". Mas quem fala isso normalmente pensa que passar fome é ficar sem seu jantar. A soma de tudo isso acaba mostrando a inconsciência social dos brasileiros. E claro, reflete também a incompetência do nosso Estado, que de sua obrigação a promover a educação a todos, prefere fazer cafuné naqueles que pela sua condição social nem deveriam ser lembrados, mas são os que conseguem fazer a maior birra.

E no final das contas é isso. Muitos falam que o problema do Brasil é estrutural, e não tem muito como fugir disso. Precisamos evoluir muito ainda para que possamos ser uma sociedade melhor. Mas infelizmente aqueles que conseguem fazer barulho não estão preocupados com isso.

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