Hoje começaram as inscrições para o Enem, e como
todos aqui devem saber, tudo o que tem se falado sobre a prova tem ganhado uma
grande repercussão. Então decidi escrever o meu ponto de vista sobre a campanha
realizada pelo ministério da Educação para a promoção Enem. Na primeira tomada
vemos um estudante com dois celulares, dentre eles um IPhone e aparentemente um
Galaxy S10, apoiados num tripé que eu nunca vi à venda por um preço acessível.
Na segunda tomada, uma estudante ao lado de seu
MacBook começa a falar para você ESTUDAR de qualquer lugar, de diferentes
formas, pela Internet, enfim... falou praticamente para que os estudantes
"se virem". Mais ao final, uma outra estudante grava outra cena e ao
pausar ela somos surpreendidos com o fato dela também possuir um Iphone, que
está equipado com um microfone da Rode e mais um outro super tripé. Todos os
takes com prateleiras de livros lindas, livros num estado tão "novo"
que nem parecem terem sido emprestadas de alguma biblioteca pública, que é para
muitos a única forma de ter um livro em suas mãos.
Este é o Brasil da "pátria amada", a
representação do estudante ali colocada é a do estudante de classe A e B. A
representação daqueles alunos que passaram pelo ensino fundamental e médio nas
melhores escolas de sua cidade, onde as mensalidades custam mais que um salário
mínimo. Este estudante médio, que o ministério da educação quis retratar,
despertou a curiosidade para saber quantos % dos estudantes brasileiros eles
conseguiram de fato representar.
Se bem me lembro, outro dia li uma reportagem
falando que mais de 30% dos estudantes brasileiros não possuem acesso a
Internet. Será mesmo que, como eu vejo muito aqui no LinkedIn, é apenas a
pessoa ter vontade, empreender e conseguir seu acesso a Internet? Ou será que o
governo deveria pensar o por que que estes 30% não possuem acesso? E quem
garante que dentro dos outros 70% todos possuem uma internet boa o suficiente
para acompanhar suas vídeo-aulas em boa qualidade? Será mesmo que todos os
alunos dentro do Brasil possuem um super smartphone, um notebook ou até mesmo
um "pc" para conseguir acompanhar vídeo-aulas? Faz algum tempo que eu
saí do ensino médio, mas lá no começo da década eu estudava de manhã e
trabalhava a tarde para conseguir comprar as coisas que eu precisava, como o
uniforme escolar, os materiais e mais tarde depois de juntar dinheiro por muito
tempo, um computador. Lembro que muita gente dependia do colégio para fazer
suas inscrições para as provas, sejam o PSS, o vestibular, Enem e até mesmo as
OBMEP. Talvez as coisas tenham mudado de lá pra cá, mas pensar nisso é querer
entrar numa bolha que não faço parte.
Querer que o Brasil seja representado desta forma é
curioso, alguns dados recentes do índice de Gini (que para quem não sabe é um
índice que tenta mensurar a desigualdade social dentro dos países) mostra que
somos o sétimo país da lista. O sétimo país de baixo pra cima, ou seja, o
sétimo país mais desigual do mundo. Reportagens mostram que 2,7% das famílias
brasileiras concentram 20% de toda a renda brasileira. Estes devem viver numa
bolha, e a propaganda do Enem realmente conseguiu representá-los. Mas o mundo
fora desta bolha é diferente, se buscarmos alguns dados internos do nosso país,
conseguimos claramente entender o porque de tanta desigualdade, o porque de
tudo isso acaba justificando. Mas vivemos num governo que o estudo social é
visto como algo inútil, desnecessário. E as coisas acabam saindo "do jeito
que tá aí".
Apenas para simplificar, alguns dados recentes
mostram que mais da metade dos brasileiros recebem menos
de um salário mínimo ao mês. 35,7% da população não possui coleta de
esgoto em sua residência, somos o 112º país no ranking de saneamento. Dados
indicam que a extrema pobreza voltou a ser uma crescente, e nós voltamos a ver
reportagens sobre a fome, algo que lembro ser bastante comum quando era criança
lá nos anos 90. Estamos próximos ao maior nível de desemprego da nossa
história, e conforme entrevista de um secretário do Ministério da Fazenda, a
perspectiva do desemprego em meio a pandemia é do número praticamente dobrar. E
a incompetência do governo é assumida quando o secretário enuncia que “A gente
pega muito dinheiro do povo, mas usa mal”.
O Brasil tinha conseguido mudar sua situação,
tivemos grandes evoluções desde a crise de 98 até parte desta década. Se
pegarmos um mapa de IDH deste período poderíamos até ficar orgulhosos, pois de
fato houve estímulo ao desenvolvimento em grande parte do Brasil. Vivemos o
melhor momento da nossa economia, com o menor índice de desemprego da história,
com o varejo e o setor de serviços mostrando sua força e assumindo o principal
papel na roda da nossa economia. E não era à toa, o governo soube incentivar
muito bem para que tudo isso acontecesse, lembram da isenção de IPI? Mas de
determinado momento pra cá, a continuidade foi perdida. E a promessa de uma
retomada e até de uma renovação, de reformas... de fazer o que deveria ser
feito, foi uma promessa enganosa.
Depois de toda esta abertura para falar sobre a
situação sócio-econômica do Brasil, quero voltar a falar do Enem. Não sou o
único a pensar que a Educação é a principal ferramenta para o desenvolvimento
de um país. Nas salas de aula cresci com professores contando que o Japão
conseguiu se recuperar de duas bombas atômicas e virar uma super potência
tecnológica graças ao investimento na educação. Por que deveria pensar
diferente?
Quando assisti a propaganda me questionei porque
eles quiseram representar aquilo que não reflete a maioria dos brasileiros. Por
que fazer uma propaganda focada claramente naqueles que se não conseguirem uma
vaga em alguma universidade pública com toda certeza conseguirão ainda pagar
por uma graduação? O foco do governo está correto? A educação se mostra como uma grande variável para o aumento da
renda de uma família. E sim, deve ser uma preocupação do
governo em querer que isso seja cada vez mais acessível. A conta é simples: famílias
com maior renda possuem maior poder de compra, e assim toda a roda da economia
pode girar mais rápido. O governo em todos os níveis, ao promover uma prova tão
abrangente quanto esta, deve estar lá para fazer isso acontecer. Caso contrário
este exame perde totalmente o sentido. Então não é difícil concluir que a propaganda do Enem destinou-se a alguma base eleitoral que
praticamente não inclui os brasileiros, até pelo contrário, exclui.
É triste, mas a exclusão está muito presente dentro do nosso dia-a-dia. Muitos,
por exemplo, lembram dos menos favorecidos apenas na hora de bater a foto de
sua "caridade" no Natal.
Não foram poucas as manifestações nos últimos anos
pedindo por maior responsabilidade dos gastos públicos. E dinheiro nós sabemos
que o país tem, se você duvida por favor pesquise por impostômetro. O que falta
é querer gastar da forma correta. Afinal de contas, quem é que precisa de
auxílio terno? Ou de auxílio moradia? Porque eles tem vale refeição? Ainda mais
quando se tem um salário astronômico para o padrão da nossa sociedade. Como
pode isso não ser incomodo pra ninguém, mas aqueles 80 reais do Bolsa Família
que ajuda muitas famílias a simplesmente "comprar alimentos" consegue
revoltar tanta gente?
Claro que daqui a quatro ou cinco anos surgirão novos
mártires, novos heróis nacionais que conseguiram sair da extrema
pobreza para conseguir um diploma que vai lhe colocar na mesma
c ondição daquele cara que estudou a vida inteira na escola
particular e fez uma universidade pública quando for procurar um emprego. E
talvez este novo mártir consiga o emprego enquanto o outro irá achar injusto,
pois pensa ser melhor do que um "ex-favelado", ou um
"ex-caipira". Mas sabemos que é muito pelo contrário, quem vem dos
meios mais carentes tende a se comprometer muito mais do que os outros. Toda
esta grande propaganda por trás destes sofridos heróis é idolatrada por muitos,
sem falar daqueles que disparam para todos os outros que "quem quer
consegue". Mas quem fala isso normalmente pensa que passar fome é ficar
sem seu jantar. A soma de tudo isso acaba mostrando a inconsciência social dos
brasileiros. E claro, reflete também a incompetência do nosso Estado, que de
sua obrigação a promover a educação a todos, prefere fazer cafuné naqueles que
pela sua condição social nem deveriam ser lembrados, mas são os que conseguem
fazer a maior birra.
E no final das contas é isso. Muitos falam que o
problema do Brasil é estrutural, e não tem muito como fugir disso. Precisamos
evoluir muito ainda para que possamos ser uma sociedade melhor. Mas
infelizmente aqueles que conseguem fazer barulho não estão preocupados com
isso.
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